Histórico detalhado do Projeto Diretrizes

Quando, em 1747, o médico da Armada Britânica James Lind decidiu administrar seis diferentes substâncias a marinheiros com escorbuto para comparar os resultados, estava realizando, provavelmente, o primeiro ensaio clínico da história. Procurava avaliar se, como era postulado, o escorbuto era realmente causado pela putrefação do corpo, podendo ser prevenido e tratado pela administração de ácidos, de modo análogo à conservação de carnes. Por isso, entre as substâncias administradas estavam ácido sulfúrico diluído, vinagre e frutas cítricas. Lind observou que os indivíduos tratados com estas últimas recuperaram-se em poucos dias, ao contrário dos demais, e recomendou que laranjas e limões fossem fornecidos aos marinheiros, mesmo reconhecendo não saber o que seus sucos possuíam de especial. O ácido ascórbico, ou vitamina C, presente nas frutas, e não nas demais substâncias, só viria a ser descoberto e a ter seu papel no metabolismo compreendido no século XX. Mas em função deste experimento, cuidadosamente descrito, a Inglaterra passou a incluir laranjas e limonada na alimentação da tripulação de seus navios, praticamente extinguindo o escorbuto entre seus homens. Ainda que quarenta anos tenham se passado desde o experimento de Lind até a adoção desta conduta.

Esta pequena história serve para ilustrar duas coisas. Primeiro que, embora por trás de todo estudo experimental ou observacional sempre exista uma premissa teórica, mesmo quando equivocada a premissa, se o estudo é realizado de maneira adequada (e o de Lindo era, nos fundamentos), os seus resultados podem se impor como um valor de verdade e de utilidade. Mas o episódio mostra também o quão longo pode ser o tempo necessário até a efetiva tradução do resultado de ensaios em práticas e condutas. Neste caso, em especial, além de algumas questões circunstanciais (como a dificuldade de se estocar alimentos frescos nos navios), as resistências eram derivadas das inúmeras teorias a respeito do escorbuto, ainda baseadas principalmente em dogmas e superstições. E também da força de um racionalismo médico ainda predominantemente galênico e escolástico: como se poderia sustentar uma prática que era, em última análise, inexplicável?

O trabalho de Lind teve de esperar a mudança de paradigma ocorrida no fi nal do século XVIII para ser valorizado e para que os seus resultados pudessem ser aplicados. Nesta época ocorreu aquilo que Michel Foucault denominou como o nascimento da clínica, em obra do mesmo nome: uma profunda mudança nas maneiras de produção do saber médico. E também do poder médico, indissociável deste e de qualquer outro saber, conforme a formulação do pensador francês, mas isto é uma outra história. Fato é que, a partir daí, ocorreu um desenvolvimento extraordinário da Medicina. Abandonaram-se dogmas milenares, como a teoria dos quatro humores, em favor da prática clínica nos moldes modernos, baseada na experimentação e na observação da evolução natural das doenças, as quais passaram a ser classifi cadas a partir de sinais e sintomas e da sua correlação com a anatomia patológica e com medidas laboratoriais.

Em 1835, o francês Pierre Charles-Alexandre Louis deu um novo e importante passo para a produção do conhecimento médico. Louis não apenas comparou, como também mediu estatisticamente, a evolução de pacientes com pneumonia que eram submetidos ou não à sangria. A sangria, realizada diretamente ou com o emprego de sanguessugas, era o tratamento favorito da época, panacéia para inúmeros males, especialmente para doenças inflamatórias. Aplicando métodos matemáticos, Louis verifi cou que, embora nos dois grupos os pacientes morressem, estatisticamente, a mortalidade era maior nos pacientes submetidos à prática. Novamente, várias décadas se passaram antes que a sangria fosse de vez abandonada e as sanguessugas deixadas em paz, mas estava estabelecida a utilidade da associação dos métodos matemáticos às pesquisas médicas.

Muitos anos se passaram desde então, e Lind e Louis são apenas dois nomes destacados, entre inúmeros outros que contribuíram para a evolução da Medicina neste período. Entretanto, tantos anos passados desde os primórdios dos ensaios clínicos e da aplicação de métodos estatísticos às pesquisas, ainda hoje boa parte da prática médica é baseada em observações não sistemáticas, em concepções derivadas por extensão das pesquisas básicas e em condutas ditas “consagradas”. Naturalmente, muitas coisas o próprio tempo, com perdão do lugar-comum, o Senhor da Razão, se encarregou de demonstrar. Henry Hancock realizou em 1848, na Inglaterra, a primeira apendicectomia bem sucedida, e não faria sentido, hoje, comparar se a melhor conduta é a expectante ou a cirúrgica para pacientes com apendicite aguda. Não faria sentido e, principalmente, não seria ético.

Ocorre que, no presente contexto, décadas não são um tempo razoável para se avaliar a efetividade das condutas, ou para que o resultados das pesquisas se traduzam em orientações práticas. Um dos pioneiros a apontar como a clínica moderna ainda é fundamentalmente baseada em consensos ou opiniões de especialistas, em um empirismo não sistematizado, e em racionalizações nem sempre corretas a partir de dados derivados de pesquisas básicas, foi o pneumologista escocês Archie Cochrane, que em seu influente trabalho Eff ectiveness and Efficiency: Random Reflections of Health Services, publicado em 1972, apontava como, para que a prática médica se tornasse mais efi ciente, ainda mais em um cenário de recursos limitados, era fundamental que fosse baseada em estudos adequados. Em especial, em ensaios clínicos controlados e randomizados, tipo de estudo, realizado de maneira incipiente por seu compatriota James Lind, que compara os resultados de intervenções distintas sobre duas ou mais populações separadas aleatoriamente, e na aplicação de métodos estatísticos para avaliação dos resultados.

Com a introdução incessante de novas tecnologias para o diagnóstico e o tratamento das doenças, e com o envelhecimento da população (em boa parte, e inegavelmente, proporcionado pelos avanços da própria Medicina), o final da década de 1970 assistiu a uma preocupação crescente com a reorientação da prática clínica, em direção à adoção de condutas que fossem embasadas em estudos metodologicamente adequados. Para isso, não era sufi ciente apenas a realização e a publicação de pesquisas, como também a revisão exaustiva e sistemática dos ensaios publicados e sua tradução em recomendações aplicáveis à prática.

Um novo paradigma surgia, a Medicina Baseada em Evidências. Neste novo paradigma, a intuição, a experiência clínica não sistematizada e o racionalismo patofi siológico davam lugar à tomada de decisões clínicas com base em pesquisas com boa metodologia e na aplicação de métodos estatísticos rigorosos. Diretrizes embasadas em evidências científicas de qualidade passaram então a ser vistas como instrumento primordial para a qualificação da assistência à saúde.

Um marco inicial deste processo foi a parceria entre o Medicare, sistema público de saúde norteamericano que atende à população idosa, e a American Heart Association, no início dos anos 1980, para a elaboração de orientações sistematizadas para a indicação do uso de marcapassos, então uma tecnologia ainda relativamente nova e de alto custo.

Na década de 1990 ocorreu um grande impulso com relação ao emprego de diretrizes clínicas, motivado principalmente pela percepção de que ao grande incremento nos custos assistenciais, em especial nos países desenvolvidos, não correspondia uma melhora proporcional nos indicadores de saúde, e pela constatação de que muitas vezes práticas discordantes eram adotadas frente às mesmas situações clínicas. Este impulso foi amplificado pela disseminação do uso de computadores e o advento da Internet, que facilitaram a produção e a aplicação de modelos matemáticos às pesquisas e, principalmente, a realização de revisões sistemáticas da literatura científica. Neste período países como o Reino Unido, a Holanda, o Canadá e os Estados Unidos iniciaram projetos ou criaram instituições voltadas especifi camente para o desenvolvimento e a implementação de diretrizes.

No Brasil surgiram algumas iniciativas, promovidas por sociedades médicas, operadoras de planos de saúde e por alguns grandes hospitais. Embora louváveis, estas iniciativas, por isoladas ou mesmo episódicas, não tinham metodologias homogêneas (o que por vezes se traduzia em conclusões confl itantes), e a seleção de tópicos obedecia aos interesses de cada entidade. Além disso, algumas das diretrizes produzidas neste período eram meras traduções de outras, elaboradas no exterior, sem levar em conta a realidade de nosso país.

No ano 2000 teve início um importante empreendimento, o Projeto Diretrizes, desenvolvido pela Associação Médica Brasileira (AMB) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). O Projeto Diretrizes trouxe para o centro do processo as sociedades de especialidades, fator fundamental para a aceitação das mesmas pela classe médica, tendo produzido diretrizes de grande qualidade.

Entretanto, estas diretrizes, pela seleção dos temas ou pela pouca diretividade das recomendações, nem sempre respondiam ao desafi o da regulação e do aprimoramento da assistência no sistema de saúde suplementar.

No momento atual a assistência à saúde passa por impasses em todo o mundo, e estes impasses se apresentam também no setor de saúde suplementar brasileiro: novas tecnologias são introduzidas incessantemente, sem que isto se reflita em grande evolução nos indicadores de saúde, os gastos aumentam, pacientes e profissionais de saúde se mostram insatisfeitos. Neste cenário aumentam as disputas e divergências, e muitas destas acabam chegando aos tribunais.

Assim, em janeiro de 2009 a Agência Nacional de Saúde Suplementar estabeleceu com a AMB um convênio destinado à elaboração de diretrizes clínicas especifi camente voltadas para a assistência na saúde suplementar brasileira. Os temas foram priorizados pela ANS, com a participação de operadoras de planos de saúde, e a sua elaboração fi cou a cargo das sociedades de especialidades, sob a coordenação de um grupo de revisores da AMB.

O diferencial que se espera destas novas diretrizes, além da priorização dos temas mais relevantes para o setor suplementar, é o seu caráter diretivo, traduzido em recomendações claras e implementáveis, mas também flexíveis o bastante para prever o diferente, o pouco usual. Transparência é outro mérito deste projeto. Transparência na metodologia adotada para a coleta de evidências, na declaração de confl itos de interesses, na reprodutibilidade dos resultados.

Mas transparência também na utilização das verbas públicas, sendo este o primeiro convênio da ANS celebrado dentro dos moldes do SICONV, sistema destinado a permitir o controle social dos convênios firmados pelo Governo Federal.

Assim, não é sem uma ponta de orgulho que apresentamos à sociedade brasileira os resultados preliminares desta iniciativa. Preliminares porque ainda se encontram em sua fase inicial, pré-implementação, e porque ainda estão sujeitos a reavaliações e a contribuições que só podem ser feitas a partir de sua divulgação.

Esperamos, com esta empreitada, tornar mais efi ciente a assistência na saúde suplementar, fornecer um instrumento seguro para que o profi ssional de saúde embase suas decisões e minimizar as situações conflituosas que chegam ao ente regulador e ao judiciário. Esperamos, em especial, estar cumprindo a missão institucional da ANS de qualificar a assistência prestada aos 50 milhões de brasileiros que são atendidos no setor de saúde suplementar.

Fausto Pereira dos Santos
Diretor – Presidente

José Luiz Gomes do Amaral
Presidente AMB